Em todos os períodos do meu ministério tenho encontrado muitos cristãos professos em lamentável estado de escravidão ao mundo, à carne ou ao diabo, pois o apóstolo diz claramente: “O pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e, sim, da graça.” Em toda a minha vida cristã tenho ficado penalizado ao encontrar tantos crentes vivendo na escravidão legalista descrita no capítulo sete de Romanos: uma vida de pecar, de resolver reformar-se e de cair novamente. E o que é particularmente entristecedor, e mesmo motivo de angústia, é que muitos pastores e cristãos proeminentes dão instrução inteiramente errônea sobre o assunto de como vencer o pecado. A orientação que, lamentavelmente, costuma ser dada sobre esse assunto, resume-se nisto: “Trata os teus pecados um por um, resolve abster-te deles, luta contra eles, com oração e jejum se for preciso, até vencê-los. Dispõe firmemente a tua vontade contra uma recaída no pecado, ora e luta, resolve não fraquejar e persiste nisso até que formes o hábito da obediência e quebres todos os teus hábitos pecaminosos”. É verdade que geralmente acrescentam: “Nessa luta, não deverás depender das tuas próprias forças, mas pedir o auxílio de Deus”.
Em uma palavra, grande parte do ensino, tanto do púlpito como da literatura evangélica, acaba dando nisto: a santificação é pelas obras, não pela fé. Noto que o Dr. Chalmers, nas suas preleções sobre Romanos, sustenta expressamente que a justificação é pela fé, mas a santificação é pelas obras. Há uns vinte e cinco anos, parece-me que um eminente professor de teologia da Nova Inglaterra sustentou praticamente a mesma doutrina. No início da minha vida cristã eu quase ia sendo enganado por uma das decisões do Presidente Edwards, que consistia mais ou menos nisto: quando ele caía em algum pecado, reconstruía a sua evolução até descobrir a origem, então lutava e orava com todas as forças contra esse pecado até subjugá-lo. Isso, como se vê, é dirigir a atenção ao ato patente do pecado, sua fonte ou ocasiões. Tomar a decisão e lutar contra o ato, faz-nos concentrar a atenção no pecado e sua fonte, desviando-a inteiramente de Cristo.
É essencial esclarecermos o quanto antes que todos os esforços dessa natureza são inúteis e não raro resultam em desilusão. Em primeiro lugar, é perder de vista o que realmente constitui o pecado, e, em segundo, abandonar a única maneira viável de evitá-Io. Desse modo poderá ser dominado e evitado o ato ou hábito exterior, enquanto que aquilo que realmente constitui o pecado permanece intacto. O pecado não é externo e sim interno. Não é movimento muscular, nem mesmo a volição causadora da ação muscular: não é um sentimento ou desejo involuntário. É um ato ou estado voluntário da mente.
O pecado é nada menos do que aquela escolha voluntária e fundamental, aquele estado de submissão ao agrado próprio, donde procedem às volições, as ações externas, os propósitos, as intenções, enfim todas as causas que são comumente chamadas de pecado. E contra que estamos agindo, quando tomamos resoluções e fazemos esforços para suprimir hábitos pecaminosos e formar outros, santos? “O amor é o cumprimento da lei.” Mas podemos induzir o amor por meio de decisões? As decisões eliminam o egoísmo? Claro que não. Podemos suprimir esta ou aquela manifestação ou expressão do egoísmo, resolvendo não fazer isto ou aquilo, orando e lutando contra o mal. Podemos resolver prestar obediência aos mandamentos de Deus. Mas arrancar do peito o egoísmo por meio de resoluções é um contra-senso. Assim também é contra-senso o esforço para conseguir, por meio de decisões, obedecer em espírito os mandamentos de Deus, amar conforme a lei de Deus.
Há muitos que sustentam que o pecado consiste nos desejos. Que seja! Dominamos por força de resoluções os nossos desejos? Poderemos, pela resolução, deixar de satisfazer determinado desejo. Poderemos fazer ainda mais, abstendo-nos de satisfazer o desejo em sua manifestação exterior. Isso, porém, não é assegurar o amor de Deus, que é o que constitui a obediência. Se nos tornássemos anacoretas, emparedando-nos em uma cela e crucificando todos os nossos desejos e apetites no que se refere à sua satisfação, apenas teríamos evitado certas formas de pecado, porém a raiz que realmente constitui o pecado não seria tocada. Nossa resolução não assegura o amor, a única verdadeira obediência a Deus. Todo o nosso batalhar contra a manifestação exterior do pecado à força das resoluções, apenas acabam tornando-nos sepulcros caiados. É inútil lutar contra o desejo, a poder de resoluções; pois tudo isso, por mais bem sucedido que seja o esforço para reprimir o pecado, quer na vida exterior quer no desejo interior, acabará em desilusão, pois a poder de resolução não podemos amar.
Todos os esforços dessa natureza para vencer o pecado são inúteis, e ainda em desacordo com a Bíblia. Esta ensina expressamente que o pecado é vencido pela fé em Cristo. Ele é “o caminho, a verdade e a vida”. Diz-se a respeito dos crentes que seus corações são “purificados pela fé” (At. 15.9). E em Atos 26.18 afirma-se que são santificados pela fé em Cristo. Em Romanos 9.31-32 lemos que os judeus não atingiram a justiça porque não a buscaram pela fé e, sim, pelas obras.
A doutrina da Bíblia é que, pela fé, Cristo salva o seu povo do pecado; que o Espírito de Cristo é recebido pela fé para habitar no coração. É a fé que opera pelo amor. O amor é operado e sustentado pela fé. Pela fé os crentes “vencem o mundo, a carne e o diabo”. É pela fé que se “apagam todos os dardos inflamados do maligno”. É pela fé que os crentes se “revestem do Senhor Jesus Cristo” e “se despem do velho homem com os seu feitos”. É pela fé que combatemos “o bom combate”, e não pelas resoluções. É pela fé que “ficamos em pé” e pelas resoluções é que caímos. Esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé. É pela fé que a carne é subjugada e conquistados os desejos carnais.
Na realidade é simplesmente pela fé que recebemos o Espírito de Cristo para operar em nós o querer e o efetuar segundo seu beneplácito. Ele derrama em nosso coração o seu próprio amor, acendendo assim o nosso. Toda vitória sobre o pecado vem pela fé em Cristo; e quando o pensamento se desvia de Cristo para as resoluções e as lutas contra o pecado, quer tenhamos consciência disso ou não, estamos agindo com nossas próprias forças, rejeitando o socorro de Cristo: estamos sob uma perigosa ilusão. Nada., senão a vida e energia do Espírito de Cristo dentro de nós, pode salvar-nos do pecado: e a confiança é a condição uniforme e universal da operação dessa energia salvadora dentro de nós.
Até quando esse fato continuará sendo ignorado, pelo menos na prática, pelos ensinadores da religião? Até que profundidade vai à raiz da presunção da justiça própria e da autodependência no coração do homem? É tão profunda que esta é uma das lições que o coração do homem mais custa a aprender: renunciar à autodependência e confiar inteiramente em Cristo. Quando abrirmos a porta para a confiança absoluta, ele entrará e fará conosco e em nós a sua morada. Inundamo-nos do seu amor. Ele faz toda a nossa alma reviver para senti-lo e. assim e somente assim, purifica o nosso coração pela fé. Ele sustenta nossa vontade na atitude de devoção. Ele aviva e regula nossos afetos, desejos, apetites e paixões, tornando-se a nossa santificação. Muito do que ouvimos em reuniões de oração e de conferência, do púlpito e da literatura, dá orientação tão errônea, que ouvir ou ler tais orientações se torna doloroso ao ponto de set quase insuportável. Isso só pode gerar ilusão, desânimo e a rejeição prática de Cristo conforme é apresentado no evangelho.
Ai da cegueira que “conduz à confusão” a alma que anseia a libertação do poder do pecado! Tenho escutado, às vezes, doutrinas legalistas sobre este assunto até sentir vontade de gritar. É simplesmente incrível ouvirmos de homens cristãos que fazem objeção ao ensino que tenho apresentado aqui, alegando que nos deixa em estado passivo, para sermos salvos sem atividade nossa. Que ignorância essa objeção revela! A Bíblia ensina que, pela confiança em Cristo, recebemos uma influência interior que estimula e dirige a nossa atividade; que pela fé recebemos sua influência purificadora no recôndito do nosso ser; que através da sua verdade revelada diretamente à alma, ele vivifica todo o nosso ser interior para ter a atitude de amor e obediência; e é esse o caminho, não havendo outro caminho prático, para vencermos o pecado.
Mas alguém poderá perguntar: “Não nos exorta o apóstolo assim: “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”? Então isso não é uma exortação para fazermos aquilo que nesse artigo estais condenando”? De maneira alguma. No verso 12 de Filipenses 2. Paulo diz: “Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém muito mais agora na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”. Não há aqui nenhuma exortação a trabalhar por força de resolução, mas sim por meio da operação interior de Deus. Paulo os tinha ensinado, quando estava presente com eles: agora, na sua ausência, exorta-os a desenvolverem a salvação, não pela resolução, mas pela operação de Deus.
É precisamente essa a doutrina do presente folheto. Paulo ensinara muitas vezes à Igreja, que Cristo no coração é a nossa santificação, e que essa influência se recebe pela fé. Portanto, não iria agora ensinar que a nossa santificação deve ser desenvolvida mediante resoluções e esforços para reprimir hábitos pecaminosos e formar hábitos santos. De modo muito feliz esse passo da Escritura reconhece as duas agências, divina e humana, na obra da santificação. Deus opera em nós o querer e o realizar: nós aceitamos pela fé a sua operação queremos e efetuamos de acordo com a sua boa vontade.
A própria fé é um estado ativo e não passivo. A idéia de uma santidade passiva é um contra-senso. Que ninguém alegue que, ao exortarmos as pessoas a confiarem inteiramente em Cristo, estamos ensinando que alguém deva ou possa ser passivo ao receber em seu íntimo a influência divina e com ela cooperar. Essa influência é moral e não física. É persuasão e não força. Influencia a livre vontade e, por conseguinte, o faz pela verdade e não pela força. Oxalá, fosse compreendido que toda a vida espiritual, que houver em qualquer pessoa, é recebida de Cristo pela fé, como o ramo recebe da videira a sua vida. Abaixo com o evangelho das resoluções! É uma cilada de morte. Abaixo com o esforço para tornar a vida santa, quando o coração não tem em si o amor de Deus! Oxalá os homens aprendessem a olhar diretamente para Cristo pelo evangelho, e de tal modo a chegarem-se a ele mediante um ato de confiante amor, que ficassem envolvidos na simpatia universal do seu modo de pensar! Isso, e somente isso, é santificação.
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