sexta-feira, 2 de julho de 2010

Ouvindo a Deus – John Stott


Uma das verdades que mais distinguem o Deus da revelação bíblica é que ele é um Deus que fala. Ao contrário dos ídolos pagãos - que, sendo mortos, são mudos - o Deus vivo falou e continua falando. Eles têm boca, mas não falam; ele não tem boca (porque é espírito) mas, mesmo assim, fala. E, já que Deus fala, nós devemos ouvir. Este é um tema constante no Antigo Testamento, em todas as três das suas divisões principais. Na Lei, por exemplo: "...amando ao Senhor teu Deus, dando ouvidos à sua voz". E nos escritos da Sabedoria: "Oxalá ouvísseis hoje a sua voz!" Existem também muitos exemplos nos Profetas. Em que residia a "dureza de coração" da qual Deus vivia reclamando para Jeremias? Era porque o povo "se recusa a ouvir as minhas palavras"." O trágico nesta situação é que o que fazia de Israel um povo especial, diferente, era precisa¬mente o fato de Deus tê-lo chamado e falado com ele. Mesmo assim, ele não ouvia nem respondia. O resultado foi juízo: "Visto que eu clamei e eles não me ouviram, eles também clamaram e eu não os ouvi". Quase se poderia dizer que a epígrafe gravada na lápide da nação seria: "O Senhor Deus falou ao seu povo, mas ele recusou-se a ouvir". Por isso Deus enviou seu Filho, dizendo: "Eles ouvirão ao meu Filho". Mas, ao invés disso, eles o mataram.



Ainda hoje Deus fala, se bem que há certas discordâncias na igreja quanto à forma como ele o faz. Eu mesmo não creio que ele fale conosco hoje em dia de maneira direta e audível, como fez, por exemplo, com Abraão, com o menino Samuel ou com Saulo de Tarso no caminho de Damasco. Nem poderíamos garantir que ele se dirige a nós "face a face, como um homem fala com seu amigo", já que esta relação íntima que Deus manteve com Moisés é especificamente relatada como tendo sido única. Para falar a verdade, as ovelhas de Cristo conhecem a voz do Bom Pastor e o seguem, pois isto é essencial para o nosso discipulado; mas em nenhum lugar nos é prometido que essa voz será audível.


Mas, então, como é que Deus falou diretamente através dos profetas? Nós certamente deveríamos rejeitar qualquer afirmação de que existam hoje profetas comparáveis aos profetas bíblicos. Pois eles eram a "boca" de Deus, instrumentos especiais de revelação, e seu ensinamento faz parte do alicerce sobre o qual está construída a igreja. Pode até ser, no entanto, que haja algum tipo secundário de dom profético, como quando Deus dá a certas pessoas uma percepção especial quanto à sua Palavra e seu querer. Mas não deveríamos atribuir infalibilidade a tais comunicações. Pelo contrário, deveríamos avaliar tanto o caráter como a mensagem daqueles que dizem falar da parte de Deus.


A principal maneira pela qual Deus nos fala hoje é através da Escritura, como o tem reconhecido a Igreja geração após geração. As palavras que Deus falou através dos autores bíblicos e que ele providenciou para que fossem escritas e preservadas não são uma letra morta. Um dos principais ministérios do Espírito Santo é tornar a Palavra escrita de Deus "viva e eficaz" e "mais cortante do que qualquer espada de dois gumes". Portanto, nunca devemos separar a Palavra do Espírito ou o Espírito da Palavra, pela simples razão de ser a Palavra de Deus "a espada do Espírito", a principal arma usada por ele para realizar seu propósito na vida de seu povo. E essa confiança que nos capacita a pensar nas Escrituras tanto como texto escrito quanto como mensagem viva. Por isso é que Jesus podia perguntar: "O que está escrito?"ou "Vocês nunca leram?", enquanto que Paulo indagava: "O que dizem as Escrituras?", quase que personificando-as. Em outras palavras, a Escritura (que significa a Palavra escrita) tanto pode ser lida como ouvida, e o que ela diz é aquilo que Deus diz através dela. Através da sua antiga Palavra Deus se dirige ao mundo moderno. Ele fala através do que já falou uma vez.


E Deus nos convida a darmos ouvidos àquilo que, através da Escritura, "o Espírito diz às igrejas". O problema é que ainda hoje, tal como nos dias do Antigo Testamento, as pessoas geralmente não ouvem, não podem ou não querem ouvir a Deus. A falta de comunicação entre Deus e nós ocorre, não porque Deus esteja morto ou calado, mas porque nós não estamos ouvindo. Se, durante um telefonema, o telefone fica mudo, nossa conclusão imediata não é que a pessoa do outro lado morreu. Pelo contrário: a ligação é que foi cortada.

O mesmo estado de "ser desligado de Deus" geralmente acontece conosco, como cristãos. Não é esta a principal causa da estagnação espiritual que às vezes experimentamos? Nós paramos, deixamos de ouvir a Deus. Talvez tenhamos deixado de ter um período diário de oração e leitura da Bíblia. Ou então, se continuamos a fazê-lo, talvez seja mais uma rotina do que uma realidade, pois já não temos aquela expectativa de que Deus nos fale. Neste caso, precisamos adotar a atitude de Samuel e dizer: "Fala, Senhor, pois o teu servo ouve". Assim como o servo de Deus, deveríamos estar aptos para dizer: "Ele me desperta todas as manhãs, desperta-me o ouvido para que eu ouça como os eruditos". Deveríamos imitar Maria de Betânia, que "quedava-se assentada aos pés do senhor a ouvir-lhe os ensinamentos". Naturalmente, precisamos não apenas ser contemplativos, mas também ativos, trabalhar mas também orar, ser tão "martas" quanto "marias". Mas não seria o caso de não permitirmos que a Marta que há em nós ceda lugar a Maria?
Porventura não temos negligenciado aquilo que Jesus chama de "a melhor parte"?

Fonte: http://www.ortopraxia.com/

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